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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Onã

I
Era tanto amor, que amor não havia mais. Tamar abriu a gaveta do armário ao lado da cama, pegou uma camisinha e se deitou. Imaginava como seria sem o marido. Logo quanto pôde sair da fantasia, recuou com culpa suas mãos virginais. Não poderia se esticar no lado dele do colchão e simplesmente esconder alguma coisa sob o lençol. Mesmo a vontade de ser mãe lhe esmagando cada energia, trapacear nunca foi uma opção. Poderia, sim, pedir que dessa vez tentassem, mas Onã nunca faltou com seus deveres de homem da casa. Ela, então, levantou-se no ritmo que convinha para deixar, aos poucos, os pensamentos conflitantes se entenderem como tudo que é parte de um só e guardou o santo objeto no mesmo lugar de onde o tirara. Desperta para o desjejum, após um breve espaço de tempo sendo nada, juntou-se ao marido à mesa da sala. Culpada pela trama, abriu logo o jogo. Onã, que não conseguia entender o problema em esperar, logo se despediu e foi trabalhar com fome, um pouco irritado e desgostoso daquela manhã de setembro.

Ela permaneceu uns minutos ainda até voltar para o quarto e se despir em um banho frio. Gritava tanto para esvair os desejos que o que duraria quinze minutos se desdobrou em mais de hora, momento no qual seguia o exemplo de Onã e colava o corpo à parede tocando-se acelerada. A água gelada queimava ainda mais o que deveria apaziguar. Um desconforto absurdo lhe causava o choro da alma e Tamar não conseguia, por mais profundo que penetrasse em sua mente, compreender do que Onã tinha medo. Tocava-se à procura de imperfeições, marcas, defeitos, queimaduras, micoses, pintas, verrugas, pelos e nada lhe parecia mais cabeludo do que deveria ser. Por mais incoerente que fosse, só podia chegar à conclusão de que o marido não a amava e esse sentimento, essa certeza que feria de dentro para fora, chegando a criar chagas que explodiam em erupções na pele, a matava no mais literal significado que um verbo algum dia possa vir a ter. Banhada e colada ao ambiente, Tamar se desfazia em desilusões e nascia à imagem do marido Onã, buscando o que dele podia copiar de ruim.

II
Acordada diferente, afogada em meio ao turbilhão que lhe rumava o destino, foi informada que o que antes era cunhado, hoje marido, tornara-se passado em sua vida. Onã, executado por deus, morto enquanto voltava do trabalho, que só sabia ser filho da puta, foi ter no inferno. Ainda viúva sem filhos, moral e motivo de continuar seu carma ao lado da família desgraçada pelo senhor, Tamar, agora alterego Onã ou, combinados os lutos dos dois desposados, Er-Onã, respirou aliviada. Vestia-se de negro profundo, o véu como quase a ausência de matéria que, combinado aos olhos borrados propositalmente, carregava-lhe ao semblante um estado de espírito muito próximo à morte. Duas pequenas pupilas eram pedacinhos de vidro a brilhar envoltos de mel, duas luas em suas humildes tentativas de tapar dois sóis. Fios curtos tomavam o lugar de fios longos na cabeleira vasta flamejante. A mulher que havia se fora e o animal que surgia era muito parecido a qualquer ser fantástico, pela beleza que hipnotizava, como hinos góticos sobre o mar mais reflexível de todos, no mais completo escuro das estrelas a pino, pelo respeito que impunha.

III
Aproximou-se do sogro ao lado do corpo de Onã e beijou-lhe a fronte. O pai castigado mal respirava olhando o que antes tinha vida. Mas se era o destino, que mais podia fazer? Que mais podia desejar? Ajoelhou-se e chorou levemente. Continha as lágrimas para não parecer fraco, o que seria impossível, tamanho era o poder que sua altura e corpo largo, aos avançados anos de vida, transmitiam como gases a serem espalhados mundo afora. O pequeno quarto funerário estava quase vazio, afora algumas coroas de flor mirando a cabeça do defunto, arranjos dedicados mais à família que ao que deitava ali eternamente. O velho pai, velando o segundo filho em poucos meses, então conseguia, finalmente, se esquecer de que vivia. Ao olhar para cima como que a buscar alguma explicação do grande e poderoso assassino, baixou rapidamente a cabeça a olhar o chão de madeira clara, alguns pedaços perdendo a cera, e se deixou cair. Ao ser levantado por uma mão sem dono, Judá só pensava no filho caçula que, em algum lugar, recebera a notícia da morte do irmão. Imaginava se já estaria a caminho do velório ou se sofria sozinho, encolhido sobre uma cadeira velha de mogno. O patriarca, tradicional e antiquado, que só calculava a reputação de sua prole, de seus descendentes, por mais que Selá fosse um jovem inconsequente, viajante por dom, já o desposava em uma promessa secreta com deus. A reputação em troca da dignidade, esse era um bom lema, um bom carma.

Suá, antes ao canto do aposento, move-se e conforta o esposo, sem nunca deixar-se ver o filho pálido, as narinas bem abertas completadas por um nariz quebrado durante o acidente. Um pouco de sangue grudara no corpo de Onã, morto adormecido no trânsito, atrasado para seu encontro com uma vagabunda. Cansada do melo que eram aqueles ritos aos mortos, a velha mulher exigiu, a quantos pudessem ajudar Judá, que levassem logo o caixão, sem querer se despedir, sem nem lacrar lá dentro aquela alma desgostosa. Os poucos homens ali obrigados a curtir secretamente, mesmo desconhecidos completos da família, apenas fetichistas crônicos, ajudaram com exímio prazer. Andavam lentamente, aproveitando no mais fundo que suas doenças, as mais diversas, permitiam, quase tocando quem, logo acima, a um palmo ou menos, se deitava. Um ou outro ou metade sem meia parte, já que eram cinco os afortunados daquele enterro, sugavam cada porção caprichada de ar que seus pulmões podiam, incluídas aqui o preenchimento das partes que lhes eram próprias, como uma pequena contração com o músculo lombar, refletida na disposição das costelas, somando que fosse uma molécula do que passava esfregado e contagiado na pele gelada. Pé depois de pé iam, soturnamente como deve ser qualquer desfile que se pareça com o que naquelas pastagens se seguia, rumo ao buraco recém cavado, a terra ainda húmida a exalar vida sobre o fim da vida.

Pararam. À frente da cova foi quando Selá viu de longe, chegando finalmente, o que, em seu íntimo, chamava enrolação. Era menino sem paciência, da mata do mundo, acostumado com o mínimo de respeito ao que morre, deixado sempre para trás. Foi ali, esperando baixarem o corpo, Judá buscando uma das mãos de Onã para roubar-lhe o anel de casado, que Tamar viu, pela primeira vez, o irmão caçula dos maridos. Conhecendo-o naquele momento ímpar pôde ainda sentir as tripas torcerem a repelir o que teriam que aguentar dali em diante. Talvez fosse o rosto repleto de pontos amarelos a explodirem por todo o dia. Talvez fosse a perturbante semelhança entre os desposados já enterrados e esse que chegava perdido, desacostumado ao que àquela cultura parecia sempre tão cabalmente banal. O jovem também pareceu se importar com a viúva. Era fácil destacá-la dos outros. Exageradamente em luto, Tamar estava deslumbrante. Foi só Selá parar, pensar e analisar a situação, a desgracenta sorte que o condenava a se casar com a sôfrega recém-desamparada mulher, que o moleque logo sorriu, excitado e esperando a noite de sua primeira transa, aqueles corpos loucos e descompromissados a gerar vida sobre o azar da vida que morria. Ele era só sonhos enquanto via Onã acabar e, escondendo o corpo por detrás de uma lápide ornada com querubins castos, masturbou-se aos vermes que se alimentavam ali daquele cemitério.

Levantou e foi ter com a família. Os doentes fetichistas, até então absortos em suas fantasias, se assustaram com a imagem do morto surgindo mais nova e lentamente pelas covas. Dois se afastaram aflitos. Judá saudou o filho, quis nunca ter vivido a imaginar que dois já se tinha ido. Abraçaram-se. O amor entre os dois continuava igual, mesmo com suas diferenças, suas escolhas sempre tão distintas, suas tradições e suas lutas. Abraçaram-se e, abraçando-se, demoraram. Lembravam-se do quanto viver é bom quando se vive e amadureceram o que um pensava do outro, afinal, Judá era só um velho babão e Selá um adolescente mimado. Botaram cada um seu mais belo sorriso no rosto, soltaram-se, apunhalando facas no coração do outro sem facas às mãos haver, e juraram saudades. O mais novo seguiu a cumprimentar a mãe, que chorava forte, agora à morte da esperança de um dia colher bons frutos da relação pai e filho, e Tamar, que, serena, chorava porque convinha chorar. Essa última ele esperou acabar a cerimônia e foi com calma, lendo cada passo que dava, um de mentira, outro de aflição, um de medo, outro de solução. Buscou no mundo um modo de abordar a viúva sem atiçar desconfiança e encontrou dentro de si a inspiração fatal, um boa noite seco que conquistou o coração seco da mulher.

IV
Foram almoçar juntos. Ele como um filho pra ela, ela a salvação, a amante ficção. Mais tarde, já na casa dos pais, sozinho, foi amargurar-se no quarto que dividiu com os irmãos. Afinal, batera o luto. O aposento era todo Er-Onã, cada detalhe, cada pôster ainda colado nas paredes manchadas, pintadas de verde e emboloradas. O armário era o mais velho, uma porta rachada há anos, década, ele jogado contra qualquer coisa que fosse machucá-lo. Er era bravo. As camas todas, em tudo, eram Onã, usadas nos mais sinceros momentos que jamais poderiam acontecer entre os dois, cada momento que lhe voava à mente, pirando gostoso por sobre essa descarga, finalmente. Onã era família. Vale descrever cada uma dessas lembranças, desde como Selá foi ser menino do mundo, à quando viu, há horas, quem lhe salvaria o mundo. Bebia para se erguer da devastação que as mortes tinham sido já que foram tarde, fumava na tentativa de respirar inverso o que até então tinha inspirado como caçula, e dormia na tentativa de sonhar a bebida e o fumo. Vale por tudo narrar Selá, filho de Judá e Suá, irmão de Er, Onã e, em alguns meses, de Perez e Zerá, os gêmeos, menino que via longe o futuro do mundo, numa dessas personalidades que só querem ser felizes e que, assim, todos também o sejam, futurista, pai de um mundo igualitário, um mundo, deveras tarde, sem deus na causa. Mas, por fim, o que realmente calha constar é o desfecho da sorte escrita a essa família, pois, mesmo prometida ao caçula Selá, a megera desafortunada mãe sem filhos, ainda naquela noite, brincando de ser meretriz, preferiu prometer-se ao velho patriarca que desabafava metendo à luz de um velho puteiro.

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